segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Amizade no direito e no dever

- Se estivesse no teu lugar, já tinha partido o loiça toda. Não faz sentido o que te estão a fazer. Comenta ele ao amigo num ar de revolta contida pelo alheio da situação, que apesar de tudo, também lhe era próxima.
- Será que vocês não vêem que quem estão a castigar é a ele, não é mais ninguém ? Dirige então a revolta para a companheira, que num silêncio quase envergonhado se quedara até então.
- Não disseste sempre que ele era para ti como um irmão ? Não pudeste contar com ele sempre que precisaste ? Não foi ele quem te ajudou sempre que foi preciso ? E agora que ele precisa, porque não o ajudam ? Isso não faz qualquer sentido. Reitera ele o raciocínio que lhe alimenta a revolta.


- Olha, dirige-se ela ao amigo que perante tudo, se mantém no silêncio que a injustiça desconhece. Eu ajudo-te naquilo que precisares de mim, mas a ela não sinto vontade de a ajudar e não ajudo, pronto. Eu sei que não é fácil para ti, mas não posso fazer uma coisa de que não tenho vontade.

Aquelas palavras ficaram-lhe tão certas e definidas na memória, quanto a certeza de que ela facilmente as iria ignorar na próxima situação em que a necessidade de ajuda não se fizesse tardar.
Seria a amizade um direito que nos permite dizer o que sentimos, ou um dever de impor uma atitude solidária ao conforto de não fazer nada pelos outros ?

- Olha, eu não te pedi nada até agora, mesmo que tenha precisado e não vai ser agora que te vou pedir. As pessoas não mudam de opinião só porque lhes pedimos. Custasse o que custasse, mantive-me de pé e fiel aos meus princípios, dos quais não abdico. Muita gente gostaria de me ver caído ou de joelhos, mas essa mesma gente, na minha situação, provavelmente já teria sucumbido. Não me importa se me ajudas ou não, importa-me quem eu sou, e um dia talvez, se estiveres na mesma situação, então darás valor a tudo o que se está a passar, pois não sei se aguentarás o que eu suportei.

Respondeu-lhe assim, o amigo, mantendo o olhar directo e incisivo, com o sorriso que lhe vagueava nos lábios, daqueles sorrisos calmos que se ganham quando se tem a consciência limpa de se ter feito o que estava certo, mesmo que numa batalha solitária que uma razão, quando incontornável, não deixa perder.

Aquela resposta do amigo, além de selar a discussão, selou algo mais importante, o conhecimento das pessoas, que revelando-se nos direitos de uma amizade, se ocultam nos deveres que a mesma acarreta.
Ela era apenas, mais uma, entre muitas as pessoas que se revelam quando a vida decide levar-nos a exame, nem sempre com os melhores resultados. Ele, de qualquer modo continuaria pelo caminho que a consciência lhe ditara, o de ajudar os que dele precisassem, não por uma qualquer obrigação religiosa, que outros tão facilmente vira atraiçoar, mas por uma questão de princípio, ou talvez de vocação.

Pois, a vida não é algo que se ensina, mas algo que se aprende, ainda que nem sempre da melhor forma.

3 comentários:

Maria Azenha disse...

destaco:
(...)de qualquer modo continuaria pelo caminho que a consciência lhe ditara, o de ajudar os que dele precisassem, não por uma qualquer obrigação religiosa, que outros tão facilmente vira atraiçoar, mas por uma questão de princípio, ou talvez de vocação.(...)

Citando excerto in 'São Manuel Bom, Mártir'de Miguel de Unamuno:

... A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê não seja o meu.» (...)

Maria Azenha disse...

o óleo é muito incisivo,esqueci de referir.


***maat

Maria Carvalho disse...

Não comento sobre Amizade...Beijos, Rui.