terça-feira, outubro 25, 2005

Hoje não há luar

Hoje levei a minha mãe para o lar.
Hoje os muros cairam e as portas franquearam-se às dunas dum deserto imenso que pouco a pouco toma conta de tudo à sua volta.
Hoje as hienas não gritam, dormindo onde os leões se deitam.
Hoje os sinos não tocam, e as beatas lançam penas de neve sobre as fogueiras, cansadas da ronda das bruxas.
Hoje descansam os que se quedaram e quedam inquietos os que não se tolheram.
Hoje a noite é calma e o silêncio deixa ouvir o bater dos corações.
Porque hoje não há luar.
Porque hoje levei a minha mãe para o lar.

domingo, outubro 23, 2005

O Anjo da Guarda

O despertador teimosamente assinala a sua presença, sem dar ares de desistir do seu intento. Como são insistentes estas pequenas criaturas sem vida, como se fossem suportadas em necessidades de auto-flagelação.
Os olhos teimam-se-lhe em não se abrirem para mais um dia igual a tantos outros, mas em que ser diferente nem sempre significaria ser melhor ou mais agradável. O corpo, a mente e a alma juntam-se sindicalmente na inércia de não acordar, enquanto os pés num esforço insuportável os remetem para o início da alvorada.
A saída de casa faz-se repetidamente em jejum na breve caminhada à casa da mãe, num acto devoto de fé inabalável. Encontra-a na cama, qual bela adormecida, onde a beleza daquele altar foi condensado no sorriso matinal de o rever, como se tivesse terminado o mais injusto dos degredos.
Ajuda-a a levantar-se e enquanto descobre entre fraldas e mudas de roupa, cuidados dignos do mais frágil dos seres. Assim, entre trocas de sorrisos cúmplices, os escrúpulos apenas decoram o saldo ainda grande, da dívida que nunca poderá pagar do carinho que outrora recebeu do mesmo modo.
Prepara-lhe o pequeno-almoço que decora com os fartos medicamentos e repetidas recomendações que a fraca memória teima em ignorar, a que junta o telefone na proximidade à espera de contactos que nunca chegam.
Troca a roupa da cama e lava a pouca loiça, como se quisesse apagar o testemunho da refeição anterior e sai com a mesma ligeireza com que entrou, depositando um beijo de oração, como se aquele ou outro qualquer pudesse ser o último num jogo de sorte e azar que não controla.
O dia decorre no temor ao toque do telefone, onde olhares furtivos acompanham anseios de aquele número familiar não aparecer no pequeno ecrã, pois seria sinal de que algo acontecera e que uma vez mais iria de urgência assistir à mãe após uma queda, rezando para que não tivesse o resultado mais temido.
Findo o dia, quando a Lua veio fazer o render ao Sol que se manteve fiel à guarda àquele templo de fé, volta após viagem onde os olhos assistiram à revelia numa condução dificilmente cuidada pelo cansaço.
Os olhos dela iluminam-se como se tivesse regressado da mais longa das viagens e onde os minutos aspiraram à condição horária.
Encontra-a sentada à mesa que em parceria com a televisão a assistem quais companheiros fiéis durante todo o dia. Aquece o jantar que as senhoras da assistência ao domicílio numa mesma devoção prepararam, e enquanto a vê comer, os seus olhos levam a melhor num intervalo de sonolência a que se abandona por momentos de vigia para assegurar-se que aquele sustento cumpre a sua missão.
Finda a noite, os cuidados repetem-se entre fraldas, cremes e deposita-a suavemente sobre o leito que a acolhe num aconchego quase maternal e onde um beijo na testa sela a atenção mais filial.
- És o meu Anjo da Guarda. Diz-lhe ela com aqueles olhos pequenos e meigos, castigados pelos óculos que lhe levaram o brilho, que ela sabiamente guardou no sorriso que enfeita aquela face onde as rugas assumem o papel de pergaminhos na mais sábia das bibliotecas.
- Era bom era, se o fosse, mas não sou. Quem o é, é quem a tem salvo no hospital e quem a trata durante o dia. Eu não estou a fazer nada de mais. Responde-lhe ele com um sorriso franco, escondendo a emoção de gratidão a quem deve tanto.
Sai num adeus sempre incerto do que acontecerá a seguir, deixando a porta franca, para que qualquer pedido de ajuda permita a quem passe intervir e o chame no número que mantém junto ao telefone.
Caminhando ao som dos seus passos, a sua sombra denuncia-o no muro que o conduz, como se sentisse a sua própria presença. Sente a caminhada ligeira de um peso mais leve, como se a sua alma o fizesse flutuar e aligeirasse a carga ou alguém o ajudasse a caminhar. Continuamente descrédulo, vira-se teimando em não ver nem ninguém nem nada a não ser algumas penas caídas no chão que lhe traçaram o rasto.Volta a percorrer de regresso, aquele corredor estreito e interior onde apenas a Lua brinca com as poças de água no chão em reflexos de saudação que o olhar dele devolve em sinal de cumprimento e de gratidão aos deuses por se ter repetido mais um dia e mais uma vez aquele acto de devoção, lembrando-se das palavras da mãe, condimentadas pela recusa dele ao mais provecto dos agradecimentos.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Cara de pau

Apesar de não ser apreciador de futebol, confesso que o tema que aqui comento, me despertou especial atenção, senão vejamos:

  1. O treinador do FCP, Co Adriaanse, diz que se os adeptos não o quiserem, basta exibirem lenços brancos ou assobiarem, que ele entenderá a mensagem e abandonará o seu posto no clube.
  2. A seguir, no jogo SLB - FCP em que o primeiro derrota o segundo, adeptos deste envergando camisolas do clube, exibem ostensivamente lenços brancos.
  3. No final do jogo, Co Adriaanse diz que nunca disse que se iria embora se os adeptos acenassem com lenços brancos e que não viu adeptos do FCP com lenços brancos, mas sim, adeptos do SLB, mantendo-se no seu posto.
Isto, de algum modo, retrata o futebol português numa simples personagem, que curiosamente nem tem nacionalidade lusa.
O incidente nem teria tanta importância se não nos tivéssemos já habituado a ver o dito por não dito, diariamente, onde dirigentes, treinadores, jogadores, árbitros e adeptos se pavoneiam em discursos amolgados e velhos, disfarçados de renovadas esperanças para consumo geral e proveito de alguns, tudo isto, condimentado com plena falta de vergonha de quem pôe a cara diante de um público tristemente apático.
É preciso ter cara de pau para, com uma integridade gelada, derreter-se no calor dos interesses e na falta de vergonha do esvaziar de valor sobre a palavra que se dá.
Quanto vale a nossa palavra ? Quanto vale a mentira ? Quanto vale a honra ?
No futebol, muito pouco, de certeza.

"Um homem sem palavra é um homem sem alma. Um homem sem alma, não chega sequer a ser Homem"

segunda-feira, outubro 10, 2005

Idonea verba

"Atrás de nós virá quem pior fará"

É o que o povo diz, e confesso, com alguma razão. De facto quando ouvi a notícia de que foram gastos 118 milhões de euros na propaganda para estas eleições autárquicas, repito cento de dezoito MILHÕES de euros, fiquei estupefacto.
Significa que se formos 10 milhões de portugueses, convictos ou não, eleitores ou não, cada um de nós, contribuiu de forma directa ou indirecta, com pouco mais de 10 euros para a propaganda eleitoral destas eleições.
Eu gostaria de dizer que não contribui, mas que fui expoliado de pouco mais de 10 euros para uma campanha que me deixa triste com o que assistimos.
Será que todos os portugas que temos visto aos pulos com bandeiras de cores e sorrisos de quem lhes bate e gosta, a quem apenas a ausência do apêndice anal os distingue de cachorros a saltitar em redor dos donos, ansiando por alguns restos dos pratos, de preferência acompanhados de algumas festas, não têm a consciência de que cada um daqueles euros, ao fim e ao cabo são pagos por todos ?
Será que não têm a consciência de que quem contribui com dinheiros para campanhas, espera algo em troca, e normalmente muito mais, e sempre em prejuizo de outros ?
Será que aquele dinheiro não poderia ser aplicado em obras de valor inquestionável ?

Pensem nisso enquanto esperam nos hospitais durante o inverno e com o aquecimento desligado por falta de verbas.
Pensem nisso enquanto não recebem a devolução do IRS que lhes tarda.
Pensem nisso enquanto pagam o IVA ao Estado apesar dos fornecedores não pagarem.
Pensem nisso enquanto não sentem que têm direito tudo aquilo que a Constituição nos consagra, por falta de verbas.

Em que pensarão os que se abstiveram ? Talvez que não tenham visto alterativas credíveis. Talvez não sirvam meramente para avalistas de um acto eleitoral conspurcado. Talvez não sirvam para receber beijinhos, electrodomésticos, bonés ou até mesmo chouriços.

Pensem nisso,... ou até noutra coisa qualquer,... desde que pensem, já não é mau.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Esquerda vs. Direita passando pelo Centro

Sempre optei teimosamente e de forma quase fundamentalista pela isenção política e pela dolorosa mas reconfortante verticalidade de princípios.
Assim, e para desamparo de muitos, tem sido tarefa hercúlea para alguém, posicionar-me na geografia política.

Dizem que sou de esquerda se compreendo trabalhadores que decoram as mãos com os mesmos calos com que acariciam os filhos que fascinados voltam de escolas mal equipadas. Ou quando as atitudes de gestão se baseiam no estatuto social, varrido a desconhecimento do tecido produtivo que suporta a mão-de-obra deste país, em critérios que remetem ao anonimato de números aqueles pequenos grandes seres que diariamente sonham, trabalham, riem e choram como os demais.
Serei de direita quando acuso os baixos índices de produtividade ou algumas teimosias cegas sindicais, ou quando a mobilização das massas produtivas visam a melhoria conjunta de resultados.
Colocam-me ao centro quando, indecisos, os conceitos se misturam em atitudes de senso comum.

Posso ser o que quiserem, mas sei que uma coisa nunca serei, aquilo que os outros querem que eu seja.

Idonea verba

"Mais vale tarde que nunca"

Hoje o Presidente da República, Jorge Sampaio, homenageou as 32 vítimas do tristemente célebre campo de prisioneiros políticos em Cabo Verde, o "Tarrafal".

Ora bem, 31 anos após o 25 de Abril, e lá encontrámos ocasião para a dita homenagem, isto para não referir, outras igualmente merecidas, a quem apenas a memória de alguns faz justiça.
Há 31 anos, que os mais altos dignatários da nação, democratas e socialistas ou comunistas, a cujos cargos ascenderam pelo evento que muitos acalentaram e poucos mereceram, não têm encontrado tempo ou agenda para a dita homenagem. Ou têm andado distraídos, ou as intenções sairam hoje defraudadas com a existência de ainda 4 sobreviventes que ao longo destes anos, têm guardado o seu testemunho em recantos de anonimato.

Eu penso que a primeira razão é a mais plausível, a avaliar pelo empenho absorvente com que se têm realizado outras homenagens e atribuídas condecorações a pessoas a quem 1974 não foi um ano grato, a exemplo Prof. Freitas do Amaral, Frank Carlucci e outros que a razão desconhece, não obstante o respeito que me possam merecer todos os homenageados, sem excepção.
Pois, mas o silêncio não cala a história, e como diria o outro "noblesse oblige".

sábado, outubro 01, 2005

Mea culpa

Não vale a pena queixar-me, porque de facto a culpa é minha e só minha.
O culpado sou eu se o dinheiro não abunda, porque decidi ganhá-lo em vez de roubar, pois se cada carteira tiver 50 euros, basatava roubar 2 por dia para ter um bom salário.
Se não tenho mais tempo para o meu filho, a culpa é minha por não viver à custa do estado, como indigente ou outra modalidade qualquer.
Se me custa pagar o seguro do carro, o culpado sou eu, porque não aceitei o exemplo do gajo que veio de Angola, tem 3 moradas diferentes e conduz com um certificado provisório inválido porque nunca fez a inspecção anual do carro. E se foi preciso procurá-lo a culpa é minha porque não o acompanhei enquanto a polícia o detinha por excesso de álcool e pedir-lhe a morada quando um juiz qualquer o mandou embora.
Como sou culpado, se a minha mãe não tem nem apoio do estado nem lugar num lar decente, porque decidi não a desamparar, nem que me prive de algumas coisas, em vez de a abandonar para ela ter prioridade na Segurança Social.
Quanta a minha culpa, se decidi pagar sempre os meus impostos, em vez de seguir o exemplo de quem tem mais do que eu e ostensivamente se gaba de não o fazer.
Se este país não está melhor, a culpa é mesmo minha, porque duvido dos políticos, qual S.Tomé, em vez de me juntar a rebanhos de chapéu e bandeira na mão.
Se não sou famoso, nem apareço insistentemente na televisão, mais uma vez sou culpado, porque não me presto a audiências nem entrego o corpo ao manifesto ao sabor de padrinhos de qualquer lobby.
Quando me mostro insatisfeito com a falta de qualidade dos meios de comunicação, a culpa é minha, porque insisto em ser exigente quando sei que o país está em crise.
Quando digo que os nossos irmãos espanhóis estão melhores do que nós, eu devia ter vergonha na cara pela culpa que tenho de como qualquer outro, devo descender de um gajo qualquer que hà uns séculos trás deu porrada nos espanhóis.
Quando vejo malta de África nas esquinas do Rossio, claro que sou culpado, porque também devo descender dum gajo qualquer que também ia numa das caravelas que achou ter descoberto terras de África.
Se sou contra os roubos, culpa minha, pois é o meio mais rápido de transacção na economia nacional, enquanto eu devia privilegiar a performance de actuação.
Se a criminalidade e a violência aumentam, eu devia assumir a minha culpa, porque é o resultado da Sociedade em que vivemos, e eu faço parte dela, logo também sou culpado.
Se o ensino está pior, que culpado eu sou, porque também não sou professor nem ensino nada a ninguém, e se o desemprego aumenta, maior a culpa que tenho porque teimo em trabalhar, tirando o lugar aos outros.
Por tudo isto e muito mais, peço-vos desculpa, pois até pelo desperdício de tempo que dedicaram a ler estas linhas, eu sou culpado.