terça-feira, abril 25, 2006

De 24 ao 26 de Abril

O dia ainda não se tinha decidido a nascer e já a porta denunciava alguém que teimava em bater-lhe com mãos habituadas a tocar de mansinho, de forma furtiva e cautelosa.
- Que é pá ? Que se passa ? Perguntou o meu pai estranhando tal procedimento, antevendo que algo de grave havia acontecido. Ele, que sabia o que valiam aquelas pancadas na porta.
- Não vás trabalhar, parece que houve um golpe de estado. Tenho estado a ouvir a rádio. Acrescenta o amigo aquela preocupação à longa amizade que os unia desde sempre. Aquela amizade que nascera e crescera na cumplicidade de entreajuda ao longo dos anos, sempre que um deles necessitava, sabendo encontrar no outro a resposta que o próprio daria em qualquer momento.
O resto do dia estendeu-se em risos, sorrisos e receios nocturnos que só a insistência dos comunicados veio acalmar como ar novo numa forja já quente ao rubro.

Era o 25 de Abril e era o ano de 1974.
Era a fome e a miséria que alimentavam o dinheiro com que se tomavam as vidas, a liberdade, a saúde e o direito a aprender para saber mais.
Eram os que na calada da noite passavam fronteiras para fugir a guerras que não entendiam, eram pretos que matavam os que como eles também não percebiam.
Eram as bocas que calavam os corpos torturados pelas denúncias dos que pouco ou nada viam.
Eram as cabeças que se vergavam em orações que os adormeciam.

É o 25 de Abril e é o ano de 2006.
A fome e a miséria numa vergonha que já pouco dá para esconder, agora com liberdade para soltar as queixas, continuam a alimentar os que lhes inutilizam as vidas no desemprego e sem meios para poderem aprender mais.
As armas, e as fugas tornaram este silêncio cúmplice dos que converteram as torturas e as denúncias em discursos e acusações repetidos numa cantilena partidária de poder.
As cabeças ora erguidas encondem almas que quedam vergadas quando se privilegia o 24 de Abril na Madeira, quando deputados na falta de vergonha escapam ao trabalho, em suma, quando não se faz justiça.
A solidariedade e a liberdade, voltaram às orações em bocas que continuam secas.

1 comentário:

Maria Carvalho disse...

Um texto real. Ao teu jeito. Agradeço-te, sinceramente, as tuas palavras nas minhas romãs, ontem...Obrigada, Rui. Muitos, muitos beijos meus.