domingo, outubro 23, 2005

O Anjo da Guarda

O despertador teimosamente assinala a sua presença, sem dar ares de desistir do seu intento. Como são insistentes estas pequenas criaturas sem vida, como se fossem suportadas em necessidades de auto-flagelação.
Os olhos teimam-se-lhe em não se abrirem para mais um dia igual a tantos outros, mas em que ser diferente nem sempre significaria ser melhor ou mais agradável. O corpo, a mente e a alma juntam-se sindicalmente na inércia de não acordar, enquanto os pés num esforço insuportável os remetem para o início da alvorada.
A saída de casa faz-se repetidamente em jejum na breve caminhada à casa da mãe, num acto devoto de fé inabalável. Encontra-a na cama, qual bela adormecida, onde a beleza daquele altar foi condensado no sorriso matinal de o rever, como se tivesse terminado o mais injusto dos degredos.
Ajuda-a a levantar-se e enquanto descobre entre fraldas e mudas de roupa, cuidados dignos do mais frágil dos seres. Assim, entre trocas de sorrisos cúmplices, os escrúpulos apenas decoram o saldo ainda grande, da dívida que nunca poderá pagar do carinho que outrora recebeu do mesmo modo.
Prepara-lhe o pequeno-almoço que decora com os fartos medicamentos e repetidas recomendações que a fraca memória teima em ignorar, a que junta o telefone na proximidade à espera de contactos que nunca chegam.
Troca a roupa da cama e lava a pouca loiça, como se quisesse apagar o testemunho da refeição anterior e sai com a mesma ligeireza com que entrou, depositando um beijo de oração, como se aquele ou outro qualquer pudesse ser o último num jogo de sorte e azar que não controla.
O dia decorre no temor ao toque do telefone, onde olhares furtivos acompanham anseios de aquele número familiar não aparecer no pequeno ecrã, pois seria sinal de que algo acontecera e que uma vez mais iria de urgência assistir à mãe após uma queda, rezando para que não tivesse o resultado mais temido.
Findo o dia, quando a Lua veio fazer o render ao Sol que se manteve fiel à guarda àquele templo de fé, volta após viagem onde os olhos assistiram à revelia numa condução dificilmente cuidada pelo cansaço.
Os olhos dela iluminam-se como se tivesse regressado da mais longa das viagens e onde os minutos aspiraram à condição horária.
Encontra-a sentada à mesa que em parceria com a televisão a assistem quais companheiros fiéis durante todo o dia. Aquece o jantar que as senhoras da assistência ao domicílio numa mesma devoção prepararam, e enquanto a vê comer, os seus olhos levam a melhor num intervalo de sonolência a que se abandona por momentos de vigia para assegurar-se que aquele sustento cumpre a sua missão.
Finda a noite, os cuidados repetem-se entre fraldas, cremes e deposita-a suavemente sobre o leito que a acolhe num aconchego quase maternal e onde um beijo na testa sela a atenção mais filial.
- És o meu Anjo da Guarda. Diz-lhe ela com aqueles olhos pequenos e meigos, castigados pelos óculos que lhe levaram o brilho, que ela sabiamente guardou no sorriso que enfeita aquela face onde as rugas assumem o papel de pergaminhos na mais sábia das bibliotecas.
- Era bom era, se o fosse, mas não sou. Quem o é, é quem a tem salvo no hospital e quem a trata durante o dia. Eu não estou a fazer nada de mais. Responde-lhe ele com um sorriso franco, escondendo a emoção de gratidão a quem deve tanto.
Sai num adeus sempre incerto do que acontecerá a seguir, deixando a porta franca, para que qualquer pedido de ajuda permita a quem passe intervir e o chame no número que mantém junto ao telefone.
Caminhando ao som dos seus passos, a sua sombra denuncia-o no muro que o conduz, como se sentisse a sua própria presença. Sente a caminhada ligeira de um peso mais leve, como se a sua alma o fizesse flutuar e aligeirasse a carga ou alguém o ajudasse a caminhar. Continuamente descrédulo, vira-se teimando em não ver nem ninguém nem nada a não ser algumas penas caídas no chão que lhe traçaram o rasto.Volta a percorrer de regresso, aquele corredor estreito e interior onde apenas a Lua brinca com as poças de água no chão em reflexos de saudação que o olhar dele devolve em sinal de cumprimento e de gratidão aos deuses por se ter repetido mais um dia e mais uma vez aquele acto de devoção, lembrando-se das palavras da mãe, condimentadas pela recusa dele ao mais provecto dos agradecimentos.

3 comentários:

SDF disse...

E no meio disto tudo que aqui foi tão bela e poéticamente descrito, num verdadeiro hino ao amor incondicional, ainda arranja tempo e espaço emocional para guardar outros para além da sua mãe, este Anjo que eu tão bem conheço.

Eu que o diga!

... e ainda há quem não acredite em Anjos...

Maria Carvalho disse...

Cheio de Amor. Aquele Amor incondicional que nos protege sempre! Gostei muito. Beijos

Maria Azenha disse...

é de uma densidade emocional este "tecido de palavras",que me comove.

Fui tocada.


Obrigada,



***