terça-feira, setembro 19, 2006

Um pontapé no mundo

A penumbra no quarto e o ruído de fritar a paciência do despertador a que falta a eficácia da antena denunciado pela música que mal se entende, anuncia o dia que se esgueira ameaçador pelas frestas das persianas.
Como detesto este hábito de colocar cortinados, vidraças, janelas e como se ainda não chegasse, as portadas quase a quererem-nos convencer de que o dia não existe, numa prepotência desconcertante da noite.

Os degraus da porta condenam-me à saída numa pressa que o atraso contraria, atropelando o pequeno-almoço que ficou por comer, num mesmo ritual de todos os dias. Nem o cão se ergue à passagem, convencido do regresso a que vota uma apatia condescendente.
O telemóvel acusa a jornada com o sarcasmo habitual, com os telefonemas reclamando como seus o tempo e a paciência que não encontro e que desenho em esboços grosseiros de esforço reincidente.
Como detesto aquelas chamadas ao cair do minuto das nove, como que a incitar à evidência da preocupação vespertina, num ambiente pré-definido à medida da moldura da circunstância.
Mais uma e outra chamada, o colega que precisa de ajuda, a ajuda que o outro não quer dar, o compromisso que a equipa de trabalho deixou por cumprir, a urgência que se fez a si própria num acesso de histerismo, a pergunta que dá acesso à postura sacana do parceiro, o desespero do cliente com crises emergentes e sei lá que mais.

A hora do almoço que foi remetido para as calendas gregas, acaba por dar lugar aos momentos permissivos de estar sossegado na esperança de que a emotividade se transforme na criação de mais uma publicação no blog.
Saio já à pressa para a reunião que me obriga a atravessar a cidade, à velocidade da paciência onde após o tempo que não tenho, consigo estacionar o carro que me conhece há mais anos do que seria de esperar. Acedo ao local do compromisso onde a espera se redobra num esforço de contenção até atingir o clímax frustrante da desmarcação tardia do compromisso, indiferente ao impacte na vida habitual.

Regresso à rua numa correria que me impele à consulta no médico, já marcada com os meses que não recordo, à margem do sentido da oportunidade ou da necessidade, sem saber o que fazer com o tempo que ninguém sabe adivinhar do atraso do médico, que doente se fez substituir por outro a quem preciso de contar tudo de novo.
Sem saber se aliviado ou se preocupado, volto às lides que já me cansam, numa vontade que o corpo desconhece.
A noite faz ameaças nas nuvens que enviou para avisar o cinzento do anoitecer, ao ritmo da chuva que não espera, sorrateira, que eu chegue ao carro, numa corrida em vão.
A roupa toma então o estado viscoso e desconfortável de um semi-húmido a princípio frio e que pouco a pouco adopta uma atitude cúmplice da transpiração que me faz antecipar o desejo do momento áureo do próximo banho.
Resignado com o trânsito que me ameaça o pouco combustível que prevertidamente o ponteiro do depósito do carro acusa em coro com aquela pequena luz cor-de-laranja, sigo numa avenida que serve de palco aos telefonemas residuais do dia, suportes fatais das querelas familiares de posfácios diários.

Estou farto disto tudo.
Paro o carro, de onde saio em abandono e abro a camisa à chuva a que me arremeto de braços abertos. Abro as mãos de tudo e de todos onde o telemóvel lidera, e sigo descalço por uma rua transversal onde dou um pontapé ao mundo, como se fosse uma lata vazia.
Rasgo o cenário que me envolve e sigo para o calor do Sol, para me sentar à sombra de nada.

4 comentários:

Maria Azenha disse...

para além da vivência deste dia atropelado pelo tempo, um final sensato e apetecível...

apreciei muito este "um pontapé no mundo".
Parece afinal que estamos todos a jogar com a bola-tempo no relvado-emprego. E o árbitro, quem é, afinal?




***maat

Anónimo disse...

Emprestas-me a tua bola para eu pontapear... só não prometo tirar a camisa... ainda seria presa por atentado ao pudor.

Agora a sério....
depois de ler o desabafo... veio-me à memória uma musica de

(Chico Buarque e Vinícius de Moraes)

Algo assim....



Sim, vai e diz, diz
Que o meu desalento já não tem mais fim
Vai e diz, diz assim
Como sou infeliz no meu descaminho
Diz que estou sozinho
E sem saber de mim
Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Que seja lá como for, por amor
Por favor é pra ela voltar
Sim, vai e diz, diz assim
Que eu rodei, que eu bebi
Que eu cai, que eu não sei
Que eu só sei que cansei, enfim
Dos meus desencontros
Corre e diz a ela

Beijo eterno em ternura.


Ana Luar

Rosario Andrade disse...

Bom dia Rui,
Muito interessante mesmo. E a escrita é poderosissima, transforma o quotidiano adverso em prazer puro.
bjico ancho

Menina Marota disse...

"...Estou farto disto tudo.
Paro o carro, de onde saio em abandono e abro a camisa à chuva a que me arremeto de braços abertos. Abro as mãos de tudo e de todos onde o telemóvel lidera, e sigo descalço por uma rua transversal onde dou um pontapé ao mundo, como se fosse uma lata vazia.
Rasgo o cenário que me envolve e sigo para o calor do Sol, para me sentar à sombra de nada.2

... no final da leitura suspiro, quantas vezes me apeteceu tirar a camisa e deixar-me estar à chuva, longe do mundo e de tudo...

Excelente texto.

Obrigada por o partilhares...Beijo e bom fim de semana ;)