Apenas isso
É apenas um daqueles momentos, em que não me apetece nada em especial, daqueles instantes em que a melancolia toma conta das solas dos sapatos, enquanto as pernas procuram, numa azáfama contrariada, acompahá-los, ainda que a custo.
O rádio anuncia, quase que envergonhado pelo ridículo, que a percentagem de adesão à greve dos funcionários públicos é de algo como 11% segundo um organismo estatal e os sindicatos 80%. Oh quem me dera que quem apurou estes números tivessem a vergonha do meu rádio, com a antena a retorcer-se da mentira que recebera do éter, por onde vagueiam as ondas hertzianas numa imensa bacanal de mentiras acossadas às verdades, qual frenezim de informação que assim, se torna inútil.
Mas valeu-me a notícia de que os astrólogos vão repensar as análises e previsões, agora que Plutão perdeu o estatuto de "planeta". Acho bem que assim seja e oh, como me sinto mais aliviado agora, depois de saber que na minha carta astrológica pode ser emendada na parte que dizia respeito áquele pequeno corpo celeste. Ele que teimava fazer parte do sistema solar como membro de pleno direito, como um deputado de um qualquer partido com direito a dormir no respeitável hemiciclo onde as vozes acordadas e adormecidas, gritos, gemidos e roncos fazem coro num entorpecimento dos sentidos.
Finalmente, as notícias no computador deram-me uma alegria inesperada. Sim, porque nem tudo é mau na vida. Um estudo recente publicado pela revista Science, revela que um grupo internacional de cientistas decifrou a sequência do genoma do ouriço-do-mar e confirmou que é muito semelhante com o do ser humano. Oh que maravilha, oh que prazer sublime, saber que as pontadas que sentia nas costas, podem ter finalmente uma potencial explicação com alguns espinhos que possam aparecer no dorso que teima em manter-se liso. Isto para não mencionar a necessidade agora premente da dupla atenção a usar o papel higiénico, não vá este romper-se numa picada inesperada que possa contaminar o dedo médio na tarefa habitual de limpeza.
De facto, tudo isto roda directa ou indirectamente em torno da ciência. Sim, os cientistas, esses mestres da descoberta na senda de conhecer o desconhecido. Porque não segui eu o desejo de infância de ser cientista ? Sim, eu que a curiosidade me caracterizava no superlativo, o que só era acompanhado pelo pavor constante da minha mãe sobre o que iria acontecer a seguir, sempre que eu perdia a inocência das ligações eléctricas com pilhas e lâmpadas de brinquedos, para aventurar-me na instalação eléctrica lá de casa. Improvisava alarmes e campaínhas que quase matavam de susto quem passasse perto, com relógios armadilhados, montagens e desmontagens de despertadores. Isto além da máquina de costura e outras que a minha mão alcançasse e a distração dos pais, permitisse, quase sempre em processos irreversíveis de reparação, delas e das partes do meu corpo que a minha mãe tocasse em seguida, com ou sem a cumplicidade de uma colher de pau que acabou os dias numa geração espontânea de duas metades, numa reposição do Big-Bang no teatro inocente das minhas costas.
É isso, eu devia ter sido cientista e inventar algo de útil e publicamente reconhecido. Sobretudo agora que o Estado até dá incentivos para que os cientistas se mantenham em solo nacional, quem sabe, na busca da pedra filosofal que permita transformar o chumbo em ouro. Como era bom conseguirem isso. Assim, que animação seria transformar o chumbo existente em cosméticos, nomeadamente nos batons das senhoras. A Lili Caneças ia adorar, ou até a Cinha Jardim e as ricas filhas. Transformavam também o chumbo das munições dos caçadores ou da PSP e GNR que assim, de certeza que já tinha sido possível identificar a origem da bala que paralisou um manifestante sobre a ponte 25 de Abril, porque o imbecil do agente que a disparou e quem o mandou disparar, de certeza que não iam desperdiçar tão valioso objecto.
Pois é, se eu fosse cientista, e como gosto também de biologia, já sei, ia criar um novo ser. Um ser que todos desejassem e se possível, resultante da aplicação das regras da reciclagem, para melhor credenciar a minha invenção.
Inventava algo assim como uma nova forma de marisco. Acredito que era uma boa ideia, de certeza das melhores, algo entre a lagosta e o caranguejo.
Podia aproveitar o Alberto João Jardim para rechear a cabeça, pois que não deve fazer muita diferença, àparte a comestibilidade. Podia aproveitar também a Júlia Pinheiro para a parte vocal, o que iria decerto com os gritos, ajudar a localizar o bicho, onde quer que estivesse, ou até pedir alguma contribuição à Teresa Guilherme para pôr o bicharoco a andar como uma barata tonta, sem sair do mesmo sítio e ajudar à sua apanha.
Pensei também em aplicar um pouco do José Castelo Branco na (in)definição sexual do bichano, o que era uma vantagem porque estava facilitada a escolha para a reprodução.
Na escolha dos braços e pernas, talvez usasse o Major Valentim Loureiro, pois longos são os tentáculos que usa e abusa, tendo de ter o cuidado de não fazer os membros demasiado longos, antes que o bicho se devorasse a ele próprio, com a gula.
Finalmente, ficava a questão da pele e da côr do novo ser das profundezas e aí a minha hesitação fazia-se sentir entre Freitas do Amaral, Zita Seabra e outros como Durão Barroso, seres de certeza já com o ADN mais completo e alterado com genes de camaleão, que podiam dar ao novo ser a capacidade de melhor se adaptar ao meio ambiente, conforme as circunstâncias.
Acho que para tornar o bicharoco mais convencido também poderia pôr um pouco de Herman José, Paulo Portas ou João Baião, claro desde que não exagerasse na dose, não fosse o bichano começar a andar de marcha a trás.
Por fim, e para facilitar a exportação, colocava-lhe um pouco de George Bush, mas muito pouco, pois já tinha aplicado o Alberto João Jardim e podia começar a cheirar mal. Ou um pouco de Le Pen para garantir que o bicho não gostava de mais ninguém, ou um pouco de Silvio Berlusconi mas muito pouco, por causa de já ter aplicado o Major.
Finalmente, sento-me e reflicto sobre o mundo, onde apesar de tanta coisa importante, como a guerra no Iraque, ou o genocídio na Palestina, hoje não me apetece fazer nem falar de nada. Apenas isso.
2 comentários:
Excelente Rui!!! Beijos, bom fim de semana.
Oi amigo, quando for grande quero escrever como tu....uma dia desses convido-te a escrever comigio uma ficção...
Abraço
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