sexta-feira, dezembro 02, 2005

Viva a "vida"

Ontem, após ter ouvido na rádio os comentários de uma qualquer organização de carisma ético e religioso, que se afirmava contra a criação de embriões como fonte de células estaminais, mesmo com fins medicinais, imaginei como seria usar in-extremis, alguns argumentos sobre a preservação da vida.

“Acordo cedo e ainda estremunhado, sigo a peregrinação diária à casa de banho. Acabo de evacuar e numa devoção inabalável, apanho todo aquele esterco cheio de matéria viva (sim, porque as bactérias também são seres vivos) e coloco-o cuidadosamente no quintal, no pouco espaço livre deixado pelos dias anteriores.
Faço a barba, mas recuso-me a lavar os dentes, com receio de aniquilar as pobres bactérias que me profanam a placa dentária. Até parece impossível como numa universidade portuguesa, pretendem criar uma vacina contra as bactérias que provocam as cáries. Cambada de assassinos.
Reduzi o pequeno almoço ao leite com café e o pão foi deixou de levar fermento, pois para quem não sabe, a fermentação baseia-se no trabalho desenvolvido por bactérias.

Está a chover, descalço-me e saio num bailado cómico para evitar pisar aquelas poças de água preciosas cheias de vida microscópica. Sim porque o tamanho pequeno não retira a dignidade e eu que o diga, pois apenas meço 1,69 m.
A custo lá cheguei ao carro e em ziguezaques conscientes sigo o caminho pelos pedaços secos da estrada.

A entrada no escritório é atormentada pela senhora da limpeza, que com ar cúmplice e criminoso, atira a sua fúria contra os pobres ácaros que angelicalmente povoam tapetes, cadeiras e sofás. Tanta maldade meu Deus, que aquela pobre mulher tem de expiar.

Chega a hora do almoço e numa fé que não desiste, renunciei ao habitual pernil assado no forno com batatas fritas e ao peixe cozido com todos. Só os nomes, exalam criminalidade. Sim porque, ao menos podiam ter chamado “membro inferior do porco, sujeito a temperatura mais elevada, com batatas passadas com óleo aquecido” ou “peixe mergulhado em água agradavelmente aquecida acompanhado com alguns legumes e batatas igualmente aquecidas”. Acabei por comer meia salada, ou melhor, partilhei a outra metade da salada com a pequena mas venerável lagarta que piedosamente devolvi ao jardim mais próximo, perante o ar estupefacto dos demais clientes. A sopa de legumes (que outra poderia comer ?) acabou por ser recusada, perante o crime que os cadáveres dos minúsculos seres a boiar denunciavam. A refeição terminou com um inocente café.

Terminado o dia de trabalho, o regresso a casa fez-se cheio dos mesmos cuidados da ida, agora mais carregado das fezes fielmente recolhidas durante o dia, para então as depositar junto das matinais. Quase podia ouvir o contentamento dos microorganismos que populavam a área de despejo.

Durante o jantar, tipicamente vegetariano, assisto a um telejornal que mais me enerva sobre crimes horrendos como a pesca e a caça. Como é possível matar tanto ser vivo, mesmo com a desculpa de alimentar muita gente. Como não fazem como eu ?
E ainda por cima, pretendem criar embriões ? Mesmo que sejam apenas dezenas ou centenas de células ? Nunca. Resignem-se ao que Deus criou. Deus sabe o que faz concerteza, pois até me criou a mim.

E nem falemos em abortos, nem que se tratem de fetos com dias ou mesmo horas de vida. Nada deve destruir o que Deus criou. Se tiverem de sofrer, pois que sofram, pois sempre ouvi dizer o senhor padre que sofrer purifica a alma e que Cristo também disse 'venham a mim, os que sofrem'.

Hoje calhou a dormir sozinho, porque a minha mulher foi visitar os pais. Ainda bem, não fosse ela querer que eu condenasse à morte alguns espermatozóides, o que para mim estaria fora de causa. Já basta a insistência dela em limpar a casa, numa orgia satânica contra as bactérias, vírus e ácaros.
Até o pediatra do meu filho participa na conspiração anti-vida quando receita antibióticos, quais bombas de napalm e até essas já foram proibidas. Claro que como tudo na natureza, aqueles seres minúsculos também se vingam, claro, e as bactérias multi-resistentes que o digam.

Matar, nunca. Mantenho-me numa fé firme e hirta, como uma pedra num imensa pedreira cheia de calhaus esclarecidos e conscientes como eu”.

2 comentários:

Maria Carvalho disse...

Espectacular! Sem palavras. Está lindo! Boa! É isso...tens toda a razão. Beijos, bom fim de semana

SDF disse...

LOL.. só tu!

E mesmo "com esses cuidados todos" esse teu alter-ego irónico-temporário cometeu uma data de crimes: Então e as alfacinhas e os legumezinhos, não saõ seres vivos também??? Ora que xenofobia a tua ignorar assim a dignidade das pobres verduras apenas porque pertencem ao reino vegtal enão ao reino animal! Francamente!!! ;-)