terça-feira, março 28, 2006

Um dia para esquecer, ou não ...

Ele há dias que todos gostaríamos de esquecer, e até seria bom esquecê-los, se não fossem úteis a fazer-nos reflectir, mesmo que tal nos faça reclamar de esquecidos.
Mesmo assim, o dia até teria sido sofrível, apesar do desânimo que olhar mais pelos outros que por nós próprios frequentemente nos tráz, se não fora terminar ante o desespero de uma mãe perante a in(certeza) de perder o seu filho, ainda criança.

Não sei o que é perder um filho, e os deuses no mais impiedoso dos castigos, à mais cruel das desventuras me poupem, mas sei o que é aparecer no seio familiar após tal desacerto da vida.

Assim, o regresso a casa após um dia interiormente desiludido, relembrou-me o compromisso de pai, levando-me a conduzir o meu filhote à urgência pediátrica do Hospital de Santa Maria.
Bendito o alívio de ser informado da bondade viral de que o meu filhote tinha sido alvo, mesmo após um par de horas numa sala de espera, em estado condizente com a insuficiência mental do funcionário do hospital e do segurança que lhe fazia companhia.
Não quero e não gosto de menosprezar as pessoas que exercem a sua actividade profissional, excepto quando se sentem ou escudam no cumprimento de um dever, que nem sabem identificar qual é, seja do ponto de vista profissional, seja do ponto de vista humano e/ou moral.

De facto, aguardava a ansiada consulta com o pediatra, numa calma tacitamente assumida perante o barulho saudável das crianças que de pleno direito teimam em sê-lo, indiferentes aos lugares e preceitos.
De repente, uma mãe saía pelo hall de entrada, amparando com as mãos, a cabeça coroada por um lenço, como uma pequena capela deambulante, donde se soltavam gemidos de pranto embrulhados com as lágrimas de mãe. A dor tomava progressivamente a forma de uma cantilena monocórdica e triste, que ela recuperara da memória perdida por terras africanas que lhe deram o ser.
Passados momentos, juntou-se-lhe uma funcionária da limpeza, que igualmente saneando a alma aos que imóveis obervavam sem agir, lhe copiou o abraço que eu lhe queria dar enquanto cuidava egoistamente do meu filhote, emprestando-lhe o amparo que lhe desejava uma mãe igualmente africana, onde a tez escura da pele apenas fazia reluzir a brancura da alma.

Aquele curto espaço de tempo, tanto quanto me permitiu ficar ciente do ocorrido, levou-me a interpelar o segurança e o funcionário da recepção para que pedissem à urgência central apoio para aquela mãe, para que a sua dor e alma se podessem acalmar. Ambos, disseram que não podiam fazer nada, que não sabiam o que fazer, o primeiro representando fielmente a cor escura da farda que envergava e o segundo revelando a aptidão quase irracional que tinha para continuar a agrafar os papéis que segurava na mão, indiferente ao que se passava.
Perante tal estado, a minha repugnância e tom de voz fizeram coro ao nervosismo e à revolta que o desespero que por empatia assumira em forma crescente, exigindo que o cuidado fosse prestado, enquanto o segurança, decerto envergonhado e por insistência quase surda de um polícia que observara o que se passava, me informa então, que o pedido tinha sido feito.

A minha revolta fora entretanto adiada pelo chamamento para a consulta, após a qual, enquanto saía, entrava de novo aquela pobre mãe, amparada pela senhora da limpeza e uma enfermeira que procuravam acalmar aquela dor, que entretanto, silenciosamente também passara a ser minha, e se vergonha e solidariedade houvesse, também passaria a ser de todos os que ali estavam quietos.

Vim-me embora, mas confesso que a dor continua, para aquela mãe e para mim também. Ele há dias para esquecer, ou talvez não.

8 comentários:

Maria Azenha disse...

Esquecer, nunca!
Apagar a memória é um comportamento das sociedades, ditas modernas, de que fazem uso e abuso!
Para pouco ou muito o programa é “Delete”!
Quem perde a Memória de si com os outros , perdeu-se para sempre.
Quem não tem memória, está Morto!
Contra a Cultura do "Delete"!

Memória transparente disse...

Como eu comprendo essa "dor que continua"...


Beijinho para si.

Menina Marota disse...

Uma lágrima, corre silenciosa pelo meu rosto. Não conheço dessa dor, mas muito perto a vi...

... como Mãe de dois filhos, perdê-los era perder-me de mim...e, tocou-me profundamente este texto.

Como Mãe, deixo um abraço solidário, porque as palavras são engolidas pela alma...

Poesia Portuguesa disse...

Deixo um abraço solidário e partilho as palavras da Menina Marota...

Maria Carvalho disse...

Um texto perfeitamente lúcido. A dor partilhada connosco que te lemos tão facilmente nas expressões simples das tuas palavras. Beijos, Rui.

Maria Carvalho disse...

Obrigada mais uma vez, Rui. Pelas palavras. Não, não rezo. Mas amo as pessoas. Beijos para ti. Muitos.

Menina Marota disse...

Passei para ver se haviam mais palavras... reli o texto e a tristeza do momento, sinto-a no meu coração. Há momentos que não deveriam existir e, a dor desta Mãe, jamais devria existir, assim...

Abraço

Ana Luar disse...

Saio com um nó na garganta...
Não me imagino forte o suficiente para assumir tal dor.
Existem momentos que seria bom nunca viver.

Beijo____________TEEEEEEEEE Rui