quinta-feira, março 16, 2006

O vagabundo

Vagueava pela noite. O frio fazia coro com as portas fechadas numa cumplicidade com o caminho por onde seguia, negando-lhe qualquer alternativa àquele percurso que o subjugava.

Ouvia os próprios passos, como se fossem tambores rufando à passagem de um exército que era só ele e as poças de água gemiam reflexos que o denunciavam a cada passo, troçando da solidão que lhe enrugava a alma.

Queria dormir. Queria repousar em qualquer lugar onde a chuva não ocupasse o espaço vazio dos que o deixaram só. Queria parar e aquecer as mãos geladas pelos que sempre admirara. Aqueles que ninguém olha, aqueles que todos ignoram, aqueles que ninguém ajuda. Queria murmurar o mesmo grito que se repetia a cada troar da tempestade que o acompanhava, enquanto cerrava as mãos sobre o peito que lançava à sorte, qual proa de navio onde embarcara os que mais amara.

Apesar de servir junto dos inocentes e de comer do pão dos famintos, queria ainda acolher na alma, todos os que sofrem e dar-lhes a beber o vinho das adegas dos sumo-sacerdotes. Queria agarrar nas mãos os mesmos raios que o feriam e lançá-los a dragões e demónios que de mansinho se lançam sobre os que oram por bem.

Soam-lhe longe os gritos das crianças que com as mãos dadas aos avós, dançam a ronda dos deuses que ele sempre adorara, numa fé que espera encontrar ao virar da próxima esquina.

Continuou a caminhar, mesmo com o declive do caminho a contrariar-lhe a intenção, mesmo com as luzes a apagar-se num acorde mudo com os passos, acentuando a escuridão à qual não consegue habituar-se.
Lança mãos de um espelho, onde não se revê no anonimato da luz que vai reflectindo no caminho, imitando a lua que se evadira no horizonte.

Como está frio, meu Deus, confessa-se-lhe a alma num pranto surdo de silêncio.

5 comentários:

Maria Carvalho disse...

Rui: começo a não ter palavras quando te visito. Está excelente. Beijos. Muitos. Carinho. Bom fim de semana.

Maria Azenha disse...

"O frio fazia coro com as portas fechadas"
"Queria repousar em qualquer lugar onde a chuva não ocupasse o espaço vazio dos que o deixaram só. "
Belo!
(...)
"enquanto cerrava as mãos sobre o peito "...
mas...a espessura do Sol cabe no peito!
(...)

"Lança mãos de um espelho"...

mas vê os pés descalços dos que caminham sobre a terra e levantam madrugadas com a solidão e as lágrimas...


o vagabundo deste texto levanta-se da terra com o bando dos pássaros.


Obrigada.


***maat

Desambientado disse...

Fabulosamente bonito, profundo e intrigante.

Jorge Moreira disse...

Muita profundidade num texto repleto de sentir e belo.
Grande Abraço,

Memória transparente disse...

Percurso na profundidade.

Beijinhos.