O vagabundo
Vagueava pela noite. O frio fazia coro com as portas fechadas numa cumplicidade com o caminho por onde seguia, negando-lhe qualquer alternativa àquele percurso que o subjugava.
Ouvia os próprios passos, como se fossem tambores rufando à passagem de um exército que era só ele e as poças de água gemiam reflexos que o denunciavam a cada passo, troçando da solidão que lhe enrugava a alma.
Queria dormir. Queria repousar em qualquer lugar onde a chuva não ocupasse o espaço vazio dos que o deixaram só. Queria parar e aquecer as mãos geladas pelos que sempre admirara. Aqueles que ninguém olha, aqueles que todos ignoram, aqueles que ninguém ajuda. Queria murmurar o mesmo grito que se repetia a cada troar da tempestade que o acompanhava, enquanto cerrava as mãos sobre o peito que lançava à sorte, qual proa de navio onde embarcara os que mais amara.
Apesar de servir junto dos inocentes e de comer do pão dos famintos, queria ainda acolher na alma, todos os que sofrem e dar-lhes a beber o vinho das adegas dos sumo-sacerdotes. Queria agarrar nas mãos os mesmos raios que o feriam e lançá-los a dragões e demónios que de mansinho se lançam sobre os que oram por bem.
Soam-lhe longe os gritos das crianças que com as mãos dadas aos avós, dançam a ronda dos deuses que ele sempre adorara, numa fé que espera encontrar ao virar da próxima esquina.
Continuou a caminhar, mesmo com o declive do caminho a contrariar-lhe a intenção, mesmo com as luzes a apagar-se num acorde mudo com os passos, acentuando a escuridão à qual não consegue habituar-se.
Lança mãos de um espelho, onde não se revê no anonimato da luz que vai reflectindo no caminho, imitando a lua que se evadira no horizonte.
Como está frio, meu Deus, confessa-se-lhe a alma num pranto surdo de silêncio.
5 comentários:
Rui: começo a não ter palavras quando te visito. Está excelente. Beijos. Muitos. Carinho. Bom fim de semana.
"O frio fazia coro com as portas fechadas"
"Queria repousar em qualquer lugar onde a chuva não ocupasse o espaço vazio dos que o deixaram só. "
Belo!
(...)
"enquanto cerrava as mãos sobre o peito "...
mas...a espessura do Sol cabe no peito!
(...)
"Lança mãos de um espelho"...
mas vê os pés descalços dos que caminham sobre a terra e levantam madrugadas com a solidão e as lágrimas...
o vagabundo deste texto levanta-se da terra com o bando dos pássaros.
Obrigada.
***maat
Fabulosamente bonito, profundo e intrigante.
Muita profundidade num texto repleto de sentir e belo.
Grande Abraço,
Percurso na profundidade.
Beijinhos.
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