domingo, dezembro 31, 2006

Em 2006, a caminho de 2007

Enquanto vou dando os derradeiros passos de 2006, vou-me recordando de tudo quanto este espaço me trouxe e levou, numa sequência de marés, emprestando a cada post um sabor de maresia que se entranha a cada frase de espuma que se esvai no desenrolar de publicações.

Aqui fui rindo do cómico, aqui abracei as causas e convicções e chorei com os inocentes. Aqui não calei quando falar foi mais importante e guardei silêncio quando não dizer nada foi mais evidente.

Mas desta feita, não vou procurar, nem justiça nem magnanimidade para dizer que 2006 me trouxe e deu neste espaço, alegrias e tristezas, contentamentos e desilusões e que provavelmente 2007 será igual também, nas primeiras, que guardo e nas segundas, que esqueço.
Não vou esconder que não poucas vezes disse aqui o que não dissera antes, e lera aqui o que antes não me houvera sido escrito.

Guardo assim, comigo o sabor dos tempos em leitura:


  • com os ensinamentos da adorável Maat no seu "Arde o Azul" e outros blogs, em que o corpo procura alcançar o caminho que o coração trilhou diante, pois estamos diante de Mestre nas artes da vida e do estar aqui. Tem sido uma oportunidade e contentamento únicos aprender com quem o sabe também e sobretudo, sabe dar e transmitir. Inclino-me perante uma alma assim e beijo-lhe as mãos num gesto que apenas guardo para uma Mãe;


  • com o sentimento e paixão em carne viva na escrita da Ana Luar no seu blog do mesmo nome, onde escrever se sente natural e forte como respirar, e em que cada texto é quase um grito silenciado. Conhecer a Ana tem sido descobrir alguém diferente e muito especial, como descobrir alguém que se encanta com o encanto do que a rodeia, na maravilha das coisas que se descobrem ser ela própria;


  • com os despertares para as coisas que nos rodeiam, com que a Cristina no seu "Contra-Capa" nos acorda para o que é importante, mesmo nas coisas mais sublimes. Tornou-se este, um dos espaços meus favoritos, onde menos comento, porquanto as minhas palavras seriam apenas de sublinhar o que já houvera sido dito e com pouco mais a dizer que não fosse aplaudir a sensatez daquele espaço;


  • com os poemas de fio a pavio da Paula Raposo no seu "As romãs da Paula" que cessou para dar lugar ao "O eco das palavras", onde o acto de escrever se lhe revê como uma extensão natural de viver, e os livros escritos e a escrever, são verdadeiras sessões de sentimentos envoltos em poesia;


  • com os textos de encanto e ensinamento do "Alquimista" que prendem à atenção e nos fazem voltar em cada volta da saudade de aprender;


  • com os textos e imagens da Maria do Céu no "A direcção do vôo". Textos e imagens simples onde cada um leia e descubra o desafio do que entenda, que difícil seria imaginar o original do recolhimento da autora;


  • com os textos da sorridente Risoleta no seu "Riso cor de Tejo" onde o encanto dos mesmos se assemelha ao sorriso franco e terno da própria autora;


  • com tantos outros espaços por onde me espreguiço frequentemente e de igual agrado que não os mencionar todos aqui, acentua a minha culpa por tal não fazer;


  • com os comentários mais e menos agradáveis de todos quantos se deram a tal tarefa e que desapercebidos não passaram, mas antes desejados se tornaram, quais Luna, Menina Marota, Simplesmente Louco, Dreams e tantos outros igualmente pertinentes e importantes.
A todos vós, obrigado pelo 2006 com que tiveram a amabilidade de me contentar, a que vos remeto um 2007 com votos de Felicidade e de boa escrita, na continuidade de estar convosco em alma e pensamento.

Ergo a minha taça e brindo com cada um de vós, o caminho para um novo ano.

terça-feira, dezembro 26, 2006

Carta ao meu amigo

Olá meu amigo, sei que tens pouco tempo disponível e que provavelmente até não lerás esta missiva, mas mesmo assim a amizade impele-me a enviar-te. Afinal, são tantas as palavras de Amigo, que não lemos ou não ouvimos.

Este Natal a tua ausência fez-se sentir, mais que nunca pois o tempo continua frio e a neve teima em esconder-se. Resta-nos o calor das lareiras e dos aquecedores, que a troco de meia dúzia de madeiros ou de corrente eléctrica, atentam à falta do calor que preferiríamos dos que queremos.

Assim, foi de igual modo que aqueci as mãos que outrora eram tuas e nem a roupa chegou para acalmar o frio que antes se dissipava no abraço fraternal com que saudávamos a vida em horas mortas.
Na mesa, os fritos, doces e vinho fizeram as honras da quadra, e o prato para ti, não se fez esquecido, enquanto a cadeira e a alma vazias denunciavam a falta que deixas sempre que não estás e o olhar perde-se vago no espaço e no tempo como se te buscasse noutra dimensão onde nos encontramos em sonhos partilhados.
O bater do relógio a caminho da meia-noite marcava os passos que em pensamento eu dava para te encontrar lá longe onde estavas, quase no desejo de que o Pai Natal existisse e me levasse com ele até ti. Através da janela via a lua que também verias e pedi-lhe para te levar as palavras que só o silêncio conhece enquanto lançava os braços ao vento para te abraçar.

Hoje já não será Natal e a lua lembrança atravessa os dias festivos para me dizer que te sinto a falta todos os dias, até ao dia que chegues.

Meu amigo, sei que tens pouco tempo disponível e que provavelmente até não lerás esta missiva, mas mesmo assim a Amizade impele-me a enviar-te. Afinal, são tantas as palavras de Amigo, que não lemos ou não ouvimos, sobretudo quando sentimos mais a falta delas.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Pedi ao Pai Natal

Foi na pressa do costume que no último momento do dia fiz o meu pedido ao Pai Natal, à semelhança do que faz a maioria das crianças de todo o mundo.
Pedi-lhe que trouxesse o calor da companhia dos que me rodeiam, enfeitado com o sorriso com a lembrança dos que não estando, se fazem eternos na presença.
Pedi-lhe que juntasse o riso e a alegria do meu filho no modo habitual dos seus 3 anos de idade, com que os meus olhos brilham ao som do cântico do 77º aniversário da minha Mãe.
Pedi-lhe também que trouxesse no vento o aroma de cada um de vós, para que na alma e no sentir, todos estivessem presentes e assim, fizesse deste, o meu Natal bonito e colorido, como o melhor dos Natais.
Assim seja e que o Pai Natal se faça representar por cada um de vós.

Obrigado e um Feliz Natal para todos.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Pegadas na neve

O céu cinzento cor de chumbo tomara a cor branca como se fosse o tecto de uma sala imensa do tamanho do horizonte, toda atapetada com um espesso manto de neve alva onde enquanto caminhava em passos lentos e firmes, uma figura encolhida do frio imprimia os passos que dava.

Dirigiu-se à janela da primeira das muitas casas que ladeavam a avenida, onde luzes trémulas de Natal enfeitavam as árvores que dançavam ao som do vento, que lhes arremessava pequenos flocos brancos, saturando-lhes as pernadas que sacudia em golpes de tempestade.
Espreitou pela vidraça. Um sorriso ondulou-lhe os lábios confundindo-os com os longos cabelos brancos que se fundiam na barba da mesma cor. Lá dentro uma criança brincava junto à lareira, iluminada por esta, a que se juntavam os olhares dos pais como que a acariciá-la.

Aquecido na alma com aquele quadro familiar, seguiu adiante onde através de uma janela pequena, uma luz ténue fazia-se sentir num apelo que atravessava a vidraça embaciada. Uma figura pequena e dobrada pela idade aconchegava-se envolta por um xaile de lã que denunciava os anos de uso, mal cobrindo o magro corpo que se aninhava junto ao braseiro. Este solidário, aquecia a cafeteira de café, que lhe servia de consolo e de companhia. Os olhos daquele homem, que antes sorriam, agora juntavam-se tristes à solidão. As mãos dedilhavam os botões que lhe fixavam o manto do corpo, que agora retirava e colocava na maçaneta da porta daquela casa, onde batera antes de se afastar.

Continuou o caminho, no mesmo silêncio dos que caminham sós, até que um barulho de vozes lhe interrompeu o pensamento. Dirigiu-se aonde vinham as vozes, que mais perto, denunciavam uma discussão. Um casal sentado à mesa, mantinha os pratos vazios apesar da mesa farta, anunciando que era a alma a quem faltava o alimento que o desentendimento recusava. Ao lado da janela por onde assistia, num pequeno jardim resistiam as últimas rosas onde gotas de orvalho se transformaram em pequenos diamantes que o frio fabricara. Rapidamente colheu duas delas, deixando-as junto da porta do casal com dois pequenos bilhetes de papel que escrevera de improviso na soleira da porta. Tocou a sineta e regressou apressado ao caminho, enquanto as vozes se calaram na surpresa do toque.

De volta ao silêncio da caminhada, continuou lento, olhando para uma janela, esta um pouco mais iluminada que as restantes. Espreitou furtivo para o candelabro que iluminava intensamente um pequeno oratório, onde uma mãe ajoelhada erguia as mãos, como se buscasse a toalha de linho invisível que lhe enxugasse as lágrimas que lhe corriam pelas faces. Adiante, sentado estava um pai de cabeça tombada que encostava às mãos, que tomara nas suas, de um filho enfermo e febril. Cá fora a expressão do rosto daquele homem fazia coro com as daqueles pais que observava, enquanto colocava as palmas das mãos abertas sobre as vidraças, como se projectasse a bênção que a sorte desconhecera até então e que o sorriso inesperado da criança anunciava agora discreto.

A volta ao trilho por onde viera fez-se serena, como mansa era a neve que cobria tudo por onde passara e seguia agora. Um choro baixo mostrava-se discreto, escutado talvez, apenas por aqueles ouvidos treinados pela experiência de ouvir os que clamam em silêncio. Assomou à janela que só ouvindo se apercebia da pouca luz que as vidraças teimavam em deixar ver. Dois rostos ladeavam uma mesa vazia onde uma jarra de flores tomava digna, o lugar que a refeição não ocupava, deixando espaço a dois pares de mãos que pousavam solidárias sobre a toalha branca como a neve. As vestes eram simples e os remendos gritavam mudos de orgulho os cuidados que recebiam apesar do uso, agora menos intenso na actividade, provavelmente por falta de trabalho que atormentava quem aquelas vestiam. Apressado, o homem retirou dos bolsos um embrulho enrugado, onde guardava a refeição seguinte que contava como sua e que o corpo agora recusava. Juntou-lhe algumas moedas que recebera como pedreiro livre e pedinte e deixou no parapeito da janela onde batera no momento de se afastar.

Continuou a caminhar, agora dirigindo-se a um vulto que o acaso lhe fizera encontrar, encolhido na soleira de uma porta, por onde o calor se deixava escapar sorrateiro sob a porta pesada duma casa igualmente imponente e aquecida, reforçando o calor que pedaços de cartão a custo asseguravam delicadamente, como se embalassem o mais frágil dos seres. Com o cuidado de não acordar o homem que dormia quase inconsciente no frio, tirou-lhe as roupas velhas e o calçado roto que rápida e furtivamente trocou pelas suas, como se na troca ganhasse o melhor dos tesouros.

Voltou ao caminho que tomara antes, apoiado num bordão feito de madeira de acácia, perseguindo os passos que agora eram mais leves enquanto a iluminação de Natal se inclinava diante do brilho que levava nos olhos e o sorriso dos lábios calava o silêncio na noite e as mãos abertas acalmavam o vento e o frio. Olhava para si mesmo, feliz com os braços abertos de contentamento que a parca indumentária que agora tinha tomava lugar em vez das vestes vermelhas que usara como uniforme na noite de Natal. Não ia de trenó nem eram as renas que o transportavam. Era felicidade o que sentia enquanto a dava também aos outros. Era isso que o fazia sentir-se o verdadeiro Pai Natal em gestos e sinais que só ele entendia.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Só, na noite ...

Noite fria, com o céu a brilhar ao ritmo das iluminações de Natal na baixa lisboeta, olhando indiferente aos poucos carros que avançam na avenida, no adiantado da hora.
O termómetro anuncia severo a baixa temperatura e nem o aquecimento do carro ajudava a aquecer a alma, que parecia avançar desatenta no frio da noite.
Os pensamentos vagueavam como anjos em torno duma árvore de Natal enquanto as pessoas nos passeios, iam encolhidas com passos apressados, quais figuras de um presépio do tamanho da cidade.
O silêncio era atormentado pelas rajadas de vento, enquanto o telemóvel reclamava repetindo-se, pela recarga de uma bateria que solidária comigo se ia entregando ao cansaço.
A teimosia e a presença insistentes do telemóvel, despertaram uma irónica e inquieta sucessão de pensamentos e de questões:

“a quem me apetecia ligar naquele momento ?”
“se quisesse, teria de facto alguém a quem fizesse sentido ligar ?
“se precisasse realmente, ligaria a alguém ? a quem ligaria ?”
“se ligasse àquela hora, quem atenderia de facto ?”

Abruptamente, num acto quase de misericórdia, o telemóvel sucumbira entretanto ao esgotamento da bateria num gemido final que me despertou para a realidade da condução e da estrada, com que dirigia o automóvel e também a vida.
Chegara entretanto a casa e em silêncio acabei por deitar-me, votando ao descanso o telemóvel que sabia inútil naquela noite e na alma.

Em momentos de desespero ou de solidão, o telemóvel ou uma mensagem podem fazer a diferença e até salvar uma vida, em que a verdadeira natureza das pessoas se revela.
Dedico este post à felicidade de uma família, onde uma mensagem fez a diferença para que a dor desse lugar à reconciliação e a uma nova oportunidade.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Justiça de amor

Reza a lenda que um dia duas mulheres afirmavam a maternidade de uma criança, reclamando-a por isso para cada uma delas, e que por isso, terão sido levadas diante de Salomão, o rei sábio da antiguidade, para que se fizesse justiça.
Perante o impasse, Salomão ordenou a um guarda, diante das mulheres, que cortasse a criança ao meio e desse metade a cada uma, ao que uma das mulheres se interpôs e pediu que então que não fizesse mal à criança e que em recurso, a entregasse à outra mulher.

Salomão, sabiamente como lhe era característico, reviu naquela mulher o amor que a fez abdicar do seu bem mais precioso para que a criança não fosse sacrificada, mesmo que isso significasse o seu sofrimento. Assim, ordenou que a criança fosse entregue à mulher que se prontificara a abdicar dela, reconhecendo-lhe o verdadeiro amor de Mãe.

Na realidade dos nossos dias, no julgamento vulgar onde nos encontramos frequentemente, muito provavelmente aquela mãe seria acusada de ter tentado enganar os demais ou até de abandono do filho, enquanto a criança seria provavelmente entregue àquela mulher que em silêncio aguardara a execução da criança, numa política de terra queimada.

Quantos de nós, somos por vezes uma daquelas mulheres e por outras aquela criança.
A justiça pode ser cega, mas quem julga não o deve ser.

domingo, dezembro 10, 2006

Morreu o canalha, ... vivam as vítimas

Sempre fui pela preservação da Vida de quem quer que seja e sempre considerei a pena de morte como um acto indigno e um atentado à dignidade humana.
Sempre me achei incapaz de matar alguém, que não fosse em desespero de causa e nessa situação, fá-lo-ia sem hesitar, ainda que pudesse vir-me a arrepender mais tarde.

Contudo, creio que até estas convicções quase perdem sentido perante algumas pessoas que ao longo dos tempos têm aparecido na História mundial, quase sempre secundados de seguidores e acólitos devotos, só equiparáveis ao esterco que denuncia o trajecto dos mais imundos seres a que a má sorte deu vida.

Pinochet, Hitler, Estaline, Mussolini, Franco, Sadam Hussein, Mao-Tse-Tung e tantos outros que como eles, marcaram a sua vida com a tortura, a violação, o rapto e o assassínio de multidões de homens, mulheres e crianças, quase sempre, apenas por serem ou pensarem de modo diferente.

Nunca me vangloriei com a morte de ninguém, mas confesso que a morte de um canalha como Pinochet não me dá pena alguma, que não seja a de não se ter feito justiça, por não ter respondido pelos crimes que cometeu directa e indirectamente.
A imunidade de Pinochet ao longo destes anos, assume-se como bandeira da indiferença e cumplicidade de quem pode intervir e não o faz, na defesa dos direitos humanos.

Maldito sejas Pinochet, tu e quantos te apoiaram, e que as chamas do crematório te queimem o corpo e a alma. Que por mil reencarnações que tenhas, se as tiveres, cumpras em ti próprio o sofrimento que infligiste aos demais e nessas penas te acompanhem do mesmo modo, todos quantos agiram como tu.

Não comemoro a tua morte, mas comemoro a libertação do mundo de tal vil criatura, em memória dos que sofreram por tua causa.

terça-feira, dezembro 05, 2006

A arte dos deuses

Sabia que as estatísticas apontam para 10% dos casais com problemas de infertilidade ?

O portão de casa abriu-se com o som, naquele dia diferente, insensível e com a tonalidade “de facto”, como se unisse à sentença que a sorte houvera imposto, indiferente aos apelos da maternidade e da paternidade.
Para que queria aquela casa que tanto desejara ? De que serviam, o emprego, o carro, a mota e tudo o resto ? A quem deixar o que embora não fosse demais, significava um nome, um esforço e uma vida num olhar ? Infame seria o pão que comia e vil o beber da água com que matava a sede. A vontade teimava em ser de abandono de tudo e de todos, e a tenacidade sucumbia à frieza dos factos.

Não poderia ser “Pai”. Restava-me o consolo de o problema ser meu e assim poder carregar comigo apenas, o apontar do dedo a uma culpa que afinal não o era. Estaria assim, votado ao amor dedicado a sobrinho e afilhados, que a sorte fazia traduzir em acessos frustados de paternidade adiada ao eterno.

Que fizeram outros que em sombras como eu se acharam em tal desmando ?
Valerá a pena fazer algo, ou arcar com a sorte, que de má, já se anunciara ?

O acaso fizera recorrer da nota que o destino, num aparente acaso sem sentido prévio, durante uma reunião de trabalho fizera guardar previdente na agenda, com o contacto do médico que fizera fama na arte de contrariar as sortes a quem os deuses impuseram de mau trato a quem quisera descendência dar o sonho de vida.

O caminho para a consulta de infertilidade fizera-se de acordo com o estigma lançado pelo nome, transformando à primeira vista o acesso, como um encontro de condenados ante o patíbulo condenatório que as paredes do consultório guardavam cúmplices, numa privacidade íntima.
O anunciar do nome, tornava semi-pública a acusação que cada um dos presentes sentia de estar ali, o que a custo o rosto condescendente do médico procurava atenuar numa atitude compreensível qual sacerdote do sagrado.

A consulta devolvera a rebeldia à sensatez do inconformismo, enquanto os esforços e reforços se concentravam em contrariar a sorte e devolver aos deuses a sorte que só a vontade sabe fazer. A dor tornara-se no alimento que fizera cerrar o punho, capaz de vergar o mais ímpio dos destinos, numa quase insensatez religiosa, que votara injusta no momento e por enquanto, à condenação ateia a hipótese de adopção.

Aliados à contrariedade do destino, exames médicos, consultas e tratamentos sucederam-se num calvário promissor e vicioso, onde conta apenas o objectivo final, a todo e qualquer custo que a sorte imponha no caminho. A determinação fizera esquecer dores e as lágrimas sublimaram-se na decisão a que se vergaram outras opções de vida, para garantir a viabilidade financeira da empreitada.

Os ciclos de tratamentos, nas desmandas à sorte, sucederam-se tríplices, esgotando fontes e alentos e a vontade arrastava-se às sortes sempre iguais do insucesso. Médicos e técnicos manipulavam a vida, quais deuses gerando novos seres a embalar nos cálices sagrados dos ventres das mães que assim se tornavam no instante de o pretenderem.

À terceira arremetida, tudo correra pior que o esperado, vergando pela primeira vez, a costumada impavidez do médico face à sucessão traiçoeira de imprevistos a que apenas a obstinação fez enfrentar até ao último momento, o qual haveria de ser, contra todas as probabilidade, ser coroado do êxito, já precipitadamente desmentido antes.

Assim, de tristezas e resultados a desmentir e de teimosas cautelas, sai o resultado que contrariando os demais e anteriores, qual fénix surtida das cinzas fazem renascer um sorriso amplo, enquanto as lágrimas de felicidade tomam as palavras que a boca não consegue dizer perante a surpresa dos crentes numa desilusão eminente.

Mais análises e exames quebraram as dúvidas e empolgaram a alegria, associando-se à surpresa do médico ante a dura caminhada, digna de fazer temer Hércules, nas dificuldades passadas.
No contrariar das sortes dos deuses, o sentimento era na temeridade, digno do maior dos atrevimentos e na condição de ora em diante de “pai” e “mãe” o do maior consolo, recompensando a obstinação e a perseverança e devolvendo à justiça o sublime amor devotado no acto futuro de “adopção” de qualquer filho próximo.

Dedico este post a todos os casais, que por problemas de infertilidade, tenham de recorrer à concepção medicamente assistida, numa mensagem de esperança, de obstinação e de perseverança, numa tarefa que é francamente árdua e exigente a todos os níveis, na qual quase só a teimosia pode ajudar qualquer apoio médico.

Dedico igualmente ao Prof. Dr. Calhaz Jorge e restante equipa que no dia 5-12-2002 fez a implantação de 2 embriões obtidos pela técnica de Fertilização In Vitro através de Micro-injecção(ICSI) que na terceira tentativa e após tudo (ou quase) ter corrido em contrariedade, sugiu inesperadamente uma gravidez de sucesso, de onde surgiu um pequeno ser que continua a ilustrar o encanto do milagre da vida.